domingo, 26 de outubro de 2008

Surdos: Falta de intérpretes e insensibilidade de ouvintes dificultam acesso a serviços públicos

Carlos não foi visto pelo médico, José desistiu de uma consulta no centro de saúde - ambos são Surdos num País onde as queixas de falta de intérpretes de Língua Gestual Portuguesa e de sensibilidade dos ouvintes continuam a revelar os entraves no acesso dos deficientes auditivos a serviços essenciais.

Surdo desde os 8 anos, Carlos Graça tinha consulta marcada num hospital em Lisboa mas o médico "recusou-se" a examiná-lo porque não ia acompanhado por um intérprete. "Não é fácil arranjar", frisa o reformado, de 65 anos, que consegue expressar-se oralmente mas não ouve, acrescentando que marcou uma nova consulta para 13 de Novembro e que ao pedido de uma intérprete foi dada resposta negativa.

A ausência também de tradutora, em cima da hora, levou José Nascimento, de 62 anos e surdo profundo desde os 2, a desistir de uma consulta no centro de saúde. "Estive à espera da intérprete mas não apareceu. Fui-me embora porque estava consciente de que a comunicação [com o médico] não era possível", afirma, em declarações à Agência Lusa traduzidas pela intérprete Ana Fernandes, da Associação Portuguesa de Surdos, que apenas tem duas tradutoras para mais de 700 associados.

Os casos relatados na primeira pessoa inicidem na Saúde, área para a qual, ao contrário da Justiça, não há, e nem estão previstos, a curto prazo, acordos com o Estado que garantam o serviço de intérpretes nas deslocações a hospitais ou centros de saúde, conforme confirmou à Lusa a Direcção-Geral de Saúde.

Contudo, a Associação Portuguesa de Surdos, com sede em Lisboa, e a Associação de Surdos do Porto apontam outros casos de "apuros": quando o surdo, sozinho, pretende, por exemplo, abrir uma conta bancária ou pedir o subsídio de desemprego e a pensão social e não consegue porque não é compreeendido. "E é muita rara a situação em que uma empresa pede um intérprete para apoiar um surdo em formação profissional ou adaptação no emprego", adianta Ana Baltazar, intérprete da Associação de Surdos do Porto, lamentando a "falta de vontade" do Estado "em colocar" profissionais como ela nos serviços de atendimento público.

Não se sabe ao certo quantos intérpretes de Língua Gestual Portuguesa estão no activo. O seu registo estatístico não existe. Mas Estado e surdos são os primeiros a admitirem que são poucos para cobrir necessidades básicas como uma ida ao médico, ao centro de emprego ou segurança social, cuja obrigatoriedade do acompanhamento de um tradutor não está definida por lei, ao contrário do ensino.

Desde 1997, data de abertura em Portugal do primeiro curso superior de intérprete de Língua Gestual Portuguesa, foram formados 156 tradutores nas escolas superiores de Educação de Setúbal, Porto e Coimbra, as únicas no País com formação do género. A maioria dos diplomados, de acordo com dados fornecidos à Lusa pelas três instituições, está a desempenhar funções nas escolas básicas e secundárias da rede pública de ensino.

Da Associação Portuguesa de Surdos e da Associação de Surdos do Porto, que chegaram a ministrar cursos de formação profissional de tradutores de Língua Gestual Portuguesa antes de ser obrigatória a formação superior para o exercício da profissão, reconhecida apenas em 1999, saíram cerca de 50 intérpretes.

Em Lisboa, alguns foram enquadrados no ensino, uns desistiram da profissão e os outros a associação "perdeu-lhes o rasto".

No Porto, 80 por cento dos formandos repartiram-se pelo ensino, formação profissional, tribunais e apoio à comunidade, nomeadamente no acompanhamento a uma consulta médica, a uma deslocação ao centro da segurança social ou nos exames de Código da Estrada.

"Agora há mais intérpretes mas não são suficientes", sustenta o presidente da Associação Portuguesa de Surdos, João Alberto Ferreira, também ele surdo, enaltecendo, apesar das carências destes profissionais no acompanhamento diário de deficientes auditivos, o aparecimento de cursos superiores de tradução depois de a Língua Gestual Portuguesa ter sido reconhecida constitucionalmente, o que sucedeu somente em 1997.

O primeiro curso superior de tradutores-intérpretes surgiu em Setúbal, precisamente nesse ano, seguindo-se no Porto, em 2001, e em Coimbra, em 2005. "Não é de repente que se formam tradutores e os poucos que há são absorvidos pelo sistema educativo" básico e secundário, considerado "prioritário", advoga Luísa Portugal, presidente do Instituto Nacional para a Reabilitação, que tutela o sector da deficiência, recordando que, muitas vezes, o trabalho de intérprete era feito sobretudo pelos familiares de surdos.

Pré-reformado, José Nascimento esteve emigrado durante 32 anos nos Estados Unidos, onde, conta, um surdo consegue um intérprete com "dois ou três dias de antecedência", esclarecer dúvidas ou solicitar informações, contactando uma central de atendimento com videotelefone, que está ligada em rede, durante 24 horas, a diversos serviços públicos, como hospitais, transportes, centros de saúde, emprego e segurança social. "O serviço de intérprete é obrigatório e pago pelo Estado", garante este surdo profundo.

Em Portugal, em contrapartida, salvo os trabalhos de tradução em tribunais, notários, conservatórias ou a pedido de estudantes universitários, que o Estado paga na totalidade ou, no último caso, comparticipa através de uma bolsa da Acção Social, as despesas com um intérprete de Língua Gestual Portuguesa são suportadas pelas associações de surdos ou pelos próprios surdos, que apontam ainda o dedo aos ouvintes pela "falta de sensibilidade".

"As pessoas [ouvintes] não têm paciência, podiam esforçar-se um bocadinho através da mímica, nem dão a oportunidade de [os surdos] escreverem, dizem que 'não percebem, não percebem' e pronto...", queixa-se o presidente da Associação Portuguesa de Surdos, João Alberto Ferreira.

Mas há excepções: os cursos de Língua Gestual da associação, diz, "são cada vez mais procurados" por professores, familiares de surdos, polícias, advogados e psicólogos.

Fonte: Visão, ElsaResende

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